sexta-feira, 21 de março de 2014

Em memória de Everaldo Felix dos Santos

4 de novembro de 2012

Três tiros.
Santo não era, não merecesse morrer.
Gritos de mulheres histéricas, cães latindo.
Ainda ouço os gritos.
Minha mãe descendo as escadas num choro tímido de quem não se despediu. Meus irmãos, o do meio chorava, enquanto o mais novo fazia o sinal da cruz - atrapalhado modo, não sabia rezar.
                Gritei que se calasse não podia ouvir o lamurio e surro desesperado deles.
                A viúva mãe de cinco filhos prostrou-se doida ao chão, descabelando-se.
                Urravam enlouquecidamente, não sabia-se vivo ou morto.
                Especulações apenas, transeuntes apostavam, como falassem banalidades, apontando o sangue no chão, palpitando sobre a quem pertencia a carne morta espalhada.
                Não tarda, no entanto os enxovalhos, um aponta e diz – não era mesmo boa gente- ao que outros acenam com a cabeça concordando. Puro desamor, da tragédia um espetáculo a céu aberto, remontando o primitivo, demônios interiores saiam pelas bocas daquela gente, um pandemônio sem fim. Alguns até cochichavam – mereceu.
                Tudo lérias escabrosas tragédia não escolhe vitimas. Nossos corpos íntimos procuram a ela como a uma amante. Buscamos por ela tanto quanto ao prazer.
                E encontramos.
                Aquele homem, um José ou um João para quem passa, e vê a escarlate poça da alma que lhe escorreu. Aquele ninguém coberto por maldizeres de quem passa.
                Esse homem não é João, tampouco José.
                Ele era filho, irmão, tio, pai, será um dia avô dos netos que não conheceu; não terá lagrimas nem braços para a filha mais velha quando se casar.
                Um artista das tintas e pinceis pelos muros onde era convidado a estar. Um artista como tantos outros marginalizados pelos guetos em que somos metidos; como foram os judeus.
                Pintado como o arquétipo do João/José, uma estatística. Uma estatística de corpos empilhados em trincheiras. Mais um morto sob o céu nu de estrelas.
                Somos indicies estatísticas, somos os quatorze mortos noticiados no jornal da noite. Alguéns , ninguéns.
                Um muro aos pedaços depois do tiroteio. Somos os João/José, que só existiram mesmo como numero.
                Aos pedaços é a vida que segue sem saber de quem esta vivo ou morto. Depois da tragédia o anuncio de paz, e todos respiram aliviados sem lembrar-se dos ninguéns deixados pra traz.
                 A paz é uma ideia ilusória, pra manter o controle. O caos é permanente – ninguéns morrem diariamente sem manchete de jornal .
                O que sabemos de morte é o sangue que respinga em nossa porta, o que sabemos do João e do José é se ele foi meu irmão, meu pai, meu tio.
La fora nada acontece.
E seguimos sendo alguéns.


Nathália Loiola