quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Banzo


Ia o menino.
                Risonho, repleto, resignado. Por nome Remmi colecionava sonhos.
                Alto, magricela, olhos pretos profundos. Sem paradeiro no mundo.
                Molecote ainda vivo e solto; pela lapa de Chico Buarque, a Ipiranga com a são joão de Caetano. E a Avenida Paulista que era dele. O amor acontece em qualquer lugar entre algum boteco e a Avenida Paulista.
                Era ele mesmo de mais pra pertencer a esse mundo. Não havia noticia de morte no no jornal que não o fizesse chorar, não havia também tão somente um broto a crescer por uma fresta da calçada que não o alegrasse absurdamente.
                Epifania pura.
                Numa tarde Remmi andava cabisbaixo pela rua, como a procura de algo que caíra pelo chão quando senhor que passava o indagou:
                - Acaso perdeu algo de seu?
                -Não – respondeu resoluto- perdi algo de nosso.
                -Nosso?
                - Sim, nosso, não possuo nada de meu. As coisas pertencem a si mesmas.
                -E o que de nosso procuravas?
                - Sonhos perdidos.
                - Perdidos? Não seriam sonhos achados?
                - Só são sonhos achados depois que os encontro, antes disso não.
                -E o que você faz depois que os encontra?
                - Eu os solto.
                - Mas porque os procura, se depois você os solta novamente?
                - Quando os encontro eles deixam de ser pedidos, e quando os liberto eles encontram sozinhos seu próprio caminho. É preciso se perder e ser encontrado antes de saber que caminho seguir. Se ninguém olha para eles a sozinhês os mata.
                - Muito bonito isso que você faz. Qual a sua graça?
                - Graça? Não tenho nenhuma, o senhor gosta de piadas?
                - Não quis dizer qual o seu nome.
                - É Remmi e o seu?
                - Bastião.
                - Muito bom conhece-lo, seu Bastião, agora eu preciso ir, ainda há muita coisa a ser feita.
                - Eu quero lhe dar um presente, tenho uma barraca de brinquedos antigos no vão do MASP vá até la amanhã.
                Remmi fez que sim com um aceno de cabeça e despediu.
                Bastião era um bom homem, mas não foi sempre assim, aprendeu a ser gente a duras penas. No passado foi um homem rico, mas gastou toda sua fortuna com cachaça e jogos. Batia na mulher, que morreu de desgosto, quando ele Bastião, causou a morte do filho num acidente de automóvel. Estava bêbado.
                 Não lhe restando mais família nem dinheiro. Bastião e seu mausoléu de lembranças , coisas antigas e brinquedos de sua infância. E foi seguindo os pés para um lugar que para ele tinha importância mítica, um lugar esquecido por sua memoria, mas que seu coração nunca abandonou.
                Bastião e suas lembranças partidas, caminhou, caminhou e caminhou chegando até o vão do MASP onde montou sua pequena barraca de coisas velhas e usadas e depositou o que restou de sua afeição.
                Estava anestesiado fazia muitos anos, mas algo naqueles profundos olhos pretos de Remmi despertou nele a vontade de cuidar e amar a outro. Um sentimento materno tomara conta de sua alma e todos os espaços vazios.
                E voltou o menino no dia seguinte como prometeu.
                Sebastião deu a ele um pequeno pássaro azul feito de madeira.
                -Que engraçado – disse Remmi- coisa mais estranha passarinho que não voa.
                - Mas esse não é um passarinho comum, esse é um passarinho imortal.
                - Imortal? Como imortal?
                - Imortal é quando alguém não  morre nunca . Depois que não estivermos mais aqui, esse passarinho continuara a existir passando pela vida de outro e outro para sempre.
                - Para sempre? Que coisa mais triste, ver tudo murchar e você e sempre frio – disse com lagrimas nos olhos- Eu não. Quero é morrer logo.
                - Não diga asneiras, você ainda é muito menino, tem muito que viver. Alias, onde você mora?
                -Na rua.
                -Como na rua? Mas e seus pais?
                - Não tenho, não lembro de já ter tido, nem sei bem como cheguei aqui.
                -Não seja bobo Remmi todos tem pai e mãe.
                -Bem ao menos não me lembro de ter tido.
                -Porque não vem morar comigo? Dou casa, comida não vai lhe faltar nada e nunca mais vai ter que ficar sozinho. Hoje mesmo acerto tudo, te adoto para filho e você fica sendo meu.
                Remmi enrubesceu de espanto, quis correr fugir para longe. Não entendi. Então enquanto recobrava o fôlego respondeu:
                - Como posso pertencer a o senhor, se já pertenço a mim mesmo?
                Bastião não via maldade na proposta, em seu coração o que queria era cuidar do menino, acarinha-lo, por pra dormir, velar seu sono caso tivesse pesadelos. Tudo muito materna    
- Você é ainda muito menino pra tomar conta de si mesmo, fica sendo meu até ter idade pra se virar sozinho.
- Seu Bastião o senhor não entende. Não estou sozinho tenho universo todo a me olhar. Tenho o manto da noite pra que eu durma e as estrelas acesas para que eu não tenha medo do escuro. Tenho o sol para me despertar, as arvores para fazer sombra e suas frutas para que eu me alimente. O mundo é vasto, ninguém esta sozinho os sonhos me mantem vivo até quando for chegada a hora da grande despedida.
Bastião entendeu. Ele amava o menino. Remmi era uma dessas criaturas raras tão passiveis de ser amadas; que vezenquando por ignorância agente se pega com o desejo de guardar numa caixa, pra vezenquando poder ficar admirando. Mas ele era dele demais pra ser nosso.
Remmi voltou pra ver Bastião ainda no dia seguinte, no semana seguinte e nos meses que seguiram. Até que um dia não voltou mais.
Dizem que morreu outros que foi embora pra algum lugar distante. Mas Bastião viu quando Remmi foi sumindo numa mistura de nevoeiro e fumaça.
Era seu lugar.


Nathália Loiola

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Ma Petite

Para ler ao som de Carla Bruni

                Pálida ela se fita no espelho, passando suavemente as costas da mão em seu rosto, Marina. Em uma procura desesperada, por traços e linhas de expressão de parentes mortos ou vivos. Possuía os mesmos tristes olhos, cor de avelã, da mãe. Ao menos era o que lhe diziam. Não a conhecera. A mãe fugira: em busca de um grande coração partido.
                Era dançarina. Tinha 16. Virgem de signo e corpo. Herdara da mãe não só os olhos, como também uma beleza única.
                Minha pequena, assim era chamada por todos na companhia de dança. Falava pouco, mas tinha graça. Despertava em todos por quem passasse uma natureza adormecida pela moral. Transpirava paixão.
                Aos 21 fez um voto de silêncio – se comunicaria tão somente através do corpo e dança - o motivo só se soube mais tarde.
                Era a melhor, ninguém mais tinha movimentos tão precisos quanto os dela. A cada gesto, cada curva, seu copo gritava. Tinha alma.
                À convite de uma companhia de dança, mudou-se para Paris. Ao pisar pela primeira vez na cidade, sentiu-se em casa como nunca antes. Era como se toda sua vida se resumisse àquele momento, ela nascera para estar ali.
                Ajeitou-se num pequeno cortiço no centro da cidade. As viagens eram frequentes. Logo ela estava dançando por toda a Europa.
                Abandonando completamente a figura de antes, Marina deixava até três amantes em cada cidade por onde passava. Nunca aprendera um idioma sequer, mantendo seu voto de silêncio.
                Em uma viagem á Cannes sem a companhia se perdeu pela cidade, até que foi dar em uma pequena viela amontoada de cortiços. Roupas na corda, crianças e cachorros por toda parte. E no ar um aroma miticamente conhecido pelos sentidos de Marina.
                Foi seguindo aquele aroma, por um estreito corredor até chegar a uma porta azul. Como quem já conhece o caminho entrou.
                Lá dentro uma pobre senhora mofina, que nada tinha de familiar. Exceto grandes olhos cor de avelã.
                Ao ver Marina a senhora começou a cantar:
             
                “Et jusqu'au matin. L'étoile d'argent. Sur le blanc satin. De ton front changeant. Dira bien mieux que moi-même. A quel point je t'aime.”
                Um vento invadiu a sala violentamente, nada ficou no lugar, a não ser as duas. Duas  reconhecendo-se uma na outra, como fossem a mesma. Marina quis chorar, quis gritar, fugir. O reencontro pôs fim a seu pacto, pôs-se vista naqueles olhos, enxergou-se de fora pra dentro e pode enfim dizer:
                -Sabe mãe queria que o mundo fosse mistério, que me pusesse para dormir com as canções sem sentido e que a vontade de acordar fosse plena. Que nunca precisasse dizer te amo, porque amo é só uma palavrazinha à toa que não vale o sentimento das gentes.
                Sem dizer mais nada deitou-se no colo de sua mãe e deixou-se acarinhar, e enquanto as mãos da senhora se perdiam nos grandes cabelos castanho de Marina, continuou a cantar:

 “Et jusqu'au matin. L'étoile d'argent. Sur le blanc satin. De ton front changeant. Dira bien mieux que moi-même. A quel point je t'aime...”

Nathália Loiola

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Anima




Para ler ao som de Chico Buarque:

            A meia luz prostrada em uma poltrona azul - de renda francesa e olhar autômato- Pinã se despede de seu ultimo cliente da noite.
            Não conhecera outra vida, se bem que duvido da existência desse mundo polido e correto de que tanto falam. Ou, de fato não existe mundo tal. Ou, a população desse estranho mundo ainda não descobriu o certo orifício. Somos, ou, não somos todos putas e bêbados, afinal?
            Pinã carregava com sigo uma dor conhecida. Dessas que só se amenizam vez ou outra com os poucos surtos de vida valida que esse tedioso mundo nos oferece.
            Ruiva cheirava a almíscar e lavanda, como me disse um amigo uma vez, possuía ela os cabelos desgrenhados de maneira a ter alma própria.
            Sempre acreditei na natureza selvagem dos cabelos das mulheres. São eles que dão a feminilidade, motivo de temor e perdição ao longo do séculos. Foram os loiros cabelos de Helena que puseram Troia a baixo, assim como foram os negros cabelos de Penélope que guiaram Ulysses até Íthaca.
            Além da melancolia constante a vida não se fazia tão dura. Era natural, a ignorância é a maior felicidade que se pode alcançar. Ninguém sofre pelo que não conhece.
           O que Pinã tinha era um incomodo um desconforto. Sempre que algo extraordinário acontecia, era como se um sentimento de culpa tomasse conta de sua alma, mas o sofrimento para ela tinha graça, quiçá prazer.
           Treva
           Vladimir Korolenko era seu nome. Seco e árido se tornou um dos clientes mais assíduos e excêntricos de Pinã.
           Era Russo, passara muitos anos exilado na Sibéria. Tinha fome. Velho, grisalho e de uma calvíce assombrosa. Não era mal. Estava cansado. Nunca fugira a possibilidade de um soco. Não batia em mulheres, mas agredira duas vezes a falecida esposa. Nenhum grande herói. Era escritor e por ofício entendia bem, das dores sentidas por Pinã.
           Nos primeiros encontros ele não dizia nada.  Tinha fome. Com passar do tempo seu desejo foi se apaziguando, foi então que levou o primeiro livro.
           Pinã não era inteligente, ela seria o que chamamos de safa. Já havia lido uma novela ou outra, nada muito intelectual. No começo estranhou. Ele lhe pedia que lesse alguns capítulos em voz alta. Conforme passava o tempo ele trazia mais livros, até que chegaram a um ponto em que só liam, mais nada.
           Quanto mais lia, mas consciência Pinã tomava do mundo. Aquilo crescia como um germe, quanto mais ela lia, mais queria saber. Sua melancolia natural crescia ao mesmo passo que sua consciência.
           Deixou de atender os clientes. Não suportava mais que a tocassem. Seu corpo havia se tornado coisa sagrada. Quem sabe até não se redimia e virava santa, como as das imagens que vira?
           Estava enlouquecendo.
           Dai veio a noticia da morte de Vladimir, Pinã não derramou lagrima, dizia, prolixa, acreditar na eternidade do ser e de sua consciência - Uma herança coletiva dizia- Queria chorar. Não chorou.
          O dinheiro passou a ser escasso, as roupas surradas e velhas.
          Os cabelos ainda eram os mesmos.
          Vendera as joias, os vestidos tudo. Só não os livros e o corpo, que se tornaram coisa sagrada. Não restando mais o que vender, decidiu.
          Venderia os cabelos - Muitas mulheres vitimas da repressão tinham a cabeça talhada pra que não crescessem mais os cabelos, tornando-os, portanto coisa valiosa.
         Cada mecha de cabelo arrancado pela navalha era como a perda de um membro vital. Como perder um a um, o fígado, o útero, um rim... até resultar na perda da alma.
          Não existe nudez maior do que a de um corpo sem alma. Foi só então que ela entendeu.
          E logo ao dobrar a esquina, morreu devastada de ternura.

Nathália Loiola