quarta-feira, 29 de julho de 2020

Versalhes

Penso que meu coração é de segunda mão
Vez ou outra ele sobressalta
Salta como fosse pular pra fora
Como pudesse ele viver sozinho fora do peito
E tivesse vivido mil outras vidas além de mim
Se agita ao olhar fotografias de lugares onde eu nunca estive
Mas que semelham sua velha casa
Talvez meu coração já tenha morado ali em alguma outra vida, muito distante dessa
Em Versalhes
Numa ruazinha em Roma
Quiçá frenquetasse a ópera em Viena
Ele se enche de melancolia e fica cá metido em meu peito, e fica tão pequeno que vezenquando parece que vai sumir
A enfermidade do meu coração tem nome Penso:
deve ser saudade.


Nathália Loiola

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Rosa


Chamava-se Rosa, tal qual a flor, pouco sabia-se porém de seus espinhos.
Feições de quem havia travado muitas batalhas, e perdido. Ainda assim no fundo de seus olhos castanhos mantinha vivo um desejo.
Seu coração não era afeito a desistência.
Baixa, cabelos curtos, não possuía nenhuma beleza excepcional, passava despercebida quase sempre. Apesar disso era dada a grandes paixões, devorou tantas vezes o próprio coração, o engoliu inteiro, massacrou, embalou a vácuo, era incansável.
Aprendeu cedo o papel da mulher em cuidar, acolher e zelar, assim ela fazia tirava os próprios braços se necessário fosse, dava os olhos, os cabelos e ia arrancando cada pedacinho de si, pra dar a quem precisasse.
Em troca? Bem, a natureza humana não é toda gratidão, tantas vezes ajudou, tantas vezes foi deixada. Ficava ela lá, sozinha, construindo novos braços, olhos e a tecer novamente os cabelos.
Vez ou outra lhe tiravam os pedaços sem permissão, mas ela não lutava, era seu papel, foi o que lhe disseram.
Ela tinha 16 quando eu a conheci, sentada num banco de praça com um fino agasalho azul, botas de chuva surradas e cabelos desgrenhados, eu amei Rosa daquele instante em diante, mas também a deixei. O amor entre mulheres não era permitido.
Rosa era ela demais, não cabia em meu peito, ela era grande, grande demais pra caber nesse mundo.
Passei anos sem ve-la, ou ouvir seu nome.
Se passaram 24 anos antes que eu a visse novamente; no mesmo banco de praça, com os cabelos ralos, ja não se refazia como antes, o desejo em seus olhos se afogou, lhe faltavam pedaços.
Ela me sorriu, com a pouca doçura que ainda lhe restava, mas não disse nada.
Anos depois me chegou a notícia de sua morte, a encontraram sozinha.
Eu nada fiz por Rosa.
Rosa sou eu.

domingo, 15 de março de 2015

Dama da noite

Noite
Mar de sal nos olhos
O silêncio dolorido da madrugada invade casas e corações 
A espreita dama da noite exala um cheiro fúnebre 
Meu peito estrangulado e desistente deseja o abreviar no escuro 
As paredes cá dentro e as árvores lá fora sentem sua presença 
O mar está de ressaca 
É chegada a hora de se entregar a espuma, as sereias cantam nas pedras a minha espera 
Ouço ao longe os marinheiros do velho e triste navio, aquele que nunca aportou,
As sereias intensificam seu canto berram por mim, terei o mesmo destino daqueles marinheiros 
Dos que nunca aportaram 
Já sinto as ondas em meus pés Na água fria e escura a primeira consciência de estar vivo
Treva 
Submerso pelo mar de mim as sereias me tomam nos braços 
Os marinheiros me servem rum e me contam histórias
Da saudade e do desejo de aportar
O mar se encerra em nós 
Estamos longe agora e ainda sinto a dama da noite 
Ela nos acompanhará pois somos aqueles que nunca aportaram  

sexta-feira, 21 de março de 2014

Em memória de Everaldo Felix dos Santos

4 de novembro de 2012

Três tiros.
Santo não era, não merecesse morrer.
Gritos de mulheres histéricas, cães latindo.
Ainda ouço os gritos.
Minha mãe descendo as escadas num choro tímido de quem não se despediu. Meus irmãos, o do meio chorava, enquanto o mais novo fazia o sinal da cruz - atrapalhado modo, não sabia rezar.
                Gritei que se calasse não podia ouvir o lamurio e surro desesperado deles.
                A viúva mãe de cinco filhos prostrou-se doida ao chão, descabelando-se.
                Urravam enlouquecidamente, não sabia-se vivo ou morto.
                Especulações apenas, transeuntes apostavam, como falassem banalidades, apontando o sangue no chão, palpitando sobre a quem pertencia a carne morta espalhada.
                Não tarda, no entanto os enxovalhos, um aponta e diz – não era mesmo boa gente- ao que outros acenam com a cabeça concordando. Puro desamor, da tragédia um espetáculo a céu aberto, remontando o primitivo, demônios interiores saiam pelas bocas daquela gente, um pandemônio sem fim. Alguns até cochichavam – mereceu.
                Tudo lérias escabrosas tragédia não escolhe vitimas. Nossos corpos íntimos procuram a ela como a uma amante. Buscamos por ela tanto quanto ao prazer.
                E encontramos.
                Aquele homem, um José ou um João para quem passa, e vê a escarlate poça da alma que lhe escorreu. Aquele ninguém coberto por maldizeres de quem passa.
                Esse homem não é João, tampouco José.
                Ele era filho, irmão, tio, pai, será um dia avô dos netos que não conheceu; não terá lagrimas nem braços para a filha mais velha quando se casar.
                Um artista das tintas e pinceis pelos muros onde era convidado a estar. Um artista como tantos outros marginalizados pelos guetos em que somos metidos; como foram os judeus.
                Pintado como o arquétipo do João/José, uma estatística. Uma estatística de corpos empilhados em trincheiras. Mais um morto sob o céu nu de estrelas.
                Somos indicies estatísticas, somos os quatorze mortos noticiados no jornal da noite. Alguéns , ninguéns.
                Um muro aos pedaços depois do tiroteio. Somos os João/José, que só existiram mesmo como numero.
                Aos pedaços é a vida que segue sem saber de quem esta vivo ou morto. Depois da tragédia o anuncio de paz, e todos respiram aliviados sem lembrar-se dos ninguéns deixados pra traz.
                 A paz é uma ideia ilusória, pra manter o controle. O caos é permanente – ninguéns morrem diariamente sem manchete de jornal .
                O que sabemos de morte é o sangue que respinga em nossa porta, o que sabemos do João e do José é se ele foi meu irmão, meu pai, meu tio.
La fora nada acontece.
E seguimos sendo alguéns.


Nathália Loiola

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Conversas de Cama

   Noite.
   Queria lhe dizer sobre tudo me entregar como uma taça a sua sede. Eu tenho febre. Não deixe que amanheça.
   Lembra quando entornei aquela taça de vinho sobre o lençol branco? Ainda me lembro como ficou enfurecido. Todo certinho em sua farda, um pragmático.
   Não me olhes assim, já sei o que vai dizer, que sou doidinha? Sou sim, doida de pedra, quero me atirar do alto de uma cachoeira e quero que venhas comigo, joga fora essa farda e vem, me ama agora, me faz tremer. Eu vejo a loucura que escondes.
   Você ri? É isso que ganho por me meter com um erudito, um lindo erudito.
   Levanta dai me leve a praia, me faz uma canção, reclama da minha roupa, diz que sou tua, me desarruma.
  O que esta a dizer? Que acredito em unicórnios e contos de fada? Eu acredito é no amor cara, em toda essa energia que emana do meu corpo e do teu, nessa sinestesia do nosso gozo.
  Acha que falo de leviandades e que a razão é que rege o curso de tudo.
  Não se zangue creio que sejas mesmo feliz, encontrou a paz que poucos alcançam. Eu não nunca terei paz não é da minha natureza, não sei amar com calma. Sabes aquela música "sou bandida, sou solta na vida e sob media pros carinhos teus", ´é daquele cantor, sabe? Você sabe, só não esta lembrado, um bonito dos olhos azuis. Bem não importa prefiro os teus, verdes.
   Esta com sono? Não durmas, ainda tenho muito o que dizer, dos meus medos, das minhas vontades e do quanto lhe quero.
   Conheço essa expressão, pensas que nada importam esses detalhes. Que somos responsáveis por nossas ações e que o passado não importa.
   Mas é preciso dizer, essa energia toda energia fluindo, Billie Holiday -a voz mais triste do mundo, você diz- ela não para de cantar indiferente a nós dois. Quero falar sobre esse brilho dos teus olhos.
   Esta cansado, sim repousa sobre meu peito, dorme, deixa que eu sinta teu coração, tua respiração.
...
   Deixa eu dizer só mais uma coisa, prometo que não falo mais. Sim eu sei que já disse isso antes, mas agora é a serio.
  Gostas mesmo de mim? Porque nosso astro ascendente é tão diferente, sou de sagitário você de libra, sua lua em escorpião a minha em leão.
 Estas a rir de novo? Tudo bem eu paro, mas antes... Ah não faz essa cara, sim eu prometi queia parar e vou, só tenho um ultimo pedido e não digo mais nada.
   Goza comigo? Aqui e agora, me ama, me toma toda tua antes que amanheça?
   Que dizes, que pergunta é essa agora? Quer saber porque temo tanto o amanhecer?  Eu lhe digo quando amanhece vais embora, pro teu trabalho, tua rotina e não sei se volta, nunca sei..
   Agora deixa disso, disseste que não queria mais conversa, vai me ama agora.
   Isso que vejo no teu olho é sim? De vagar com calma não me engole assim inteira,  não deixa essa noite acabar . Você não tem o poder de parar a noite? Eu sei, eu sei...
   Canta no meu ouvido aquela música "for love, you'd be so easy to love.."
   Ah você também não canta? Então aumenta o radio.
   Vem..

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Despedida


As quatro da manhã com mãos tremulas e coração quieto Alice:
De repente me lembrei que precisava lhe escrever, pois todo sentimento que começa com poesia precisa terminar ao ruidoso som da maquina teclando...

Olhos vendados pela noite,
Os lábios passeiam  pela forma feminina,
Movimentos circulares beijam pequenos montes,
Rubores sobem as faces,
O sexo eriçavel contido,
Corpos despidos e o desejo mítico da fusão
Pernas e braços se confundem,
Como androgenos os seres se amam,
Como êxtase e jazz
Os corpos se despem
O prazer é uma febre
Curada pelo gozo
Pois no gozo os corpos
Se "desandrogenizam"
Homem e Mulher enfim
Devolvidos os braços e pernas
Toca Ella no radio
Enquanto lentamente nos vestimos
Em seus olhinhos caídos
É despedida..



quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Banzo


Ia o menino.
                Risonho, repleto, resignado. Por nome Remmi colecionava sonhos.
                Alto, magricela, olhos pretos profundos. Sem paradeiro no mundo.
                Molecote ainda vivo e solto; pela lapa de Chico Buarque, a Ipiranga com a são joão de Caetano. E a Avenida Paulista que era dele. O amor acontece em qualquer lugar entre algum boteco e a Avenida Paulista.
                Era ele mesmo de mais pra pertencer a esse mundo. Não havia noticia de morte no no jornal que não o fizesse chorar, não havia também tão somente um broto a crescer por uma fresta da calçada que não o alegrasse absurdamente.
                Epifania pura.
                Numa tarde Remmi andava cabisbaixo pela rua, como a procura de algo que caíra pelo chão quando senhor que passava o indagou:
                - Acaso perdeu algo de seu?
                -Não – respondeu resoluto- perdi algo de nosso.
                -Nosso?
                - Sim, nosso, não possuo nada de meu. As coisas pertencem a si mesmas.
                -E o que de nosso procuravas?
                - Sonhos perdidos.
                - Perdidos? Não seriam sonhos achados?
                - Só são sonhos achados depois que os encontro, antes disso não.
                -E o que você faz depois que os encontra?
                - Eu os solto.
                - Mas porque os procura, se depois você os solta novamente?
                - Quando os encontro eles deixam de ser pedidos, e quando os liberto eles encontram sozinhos seu próprio caminho. É preciso se perder e ser encontrado antes de saber que caminho seguir. Se ninguém olha para eles a sozinhês os mata.
                - Muito bonito isso que você faz. Qual a sua graça?
                - Graça? Não tenho nenhuma, o senhor gosta de piadas?
                - Não quis dizer qual o seu nome.
                - É Remmi e o seu?
                - Bastião.
                - Muito bom conhece-lo, seu Bastião, agora eu preciso ir, ainda há muita coisa a ser feita.
                - Eu quero lhe dar um presente, tenho uma barraca de brinquedos antigos no vão do MASP vá até la amanhã.
                Remmi fez que sim com um aceno de cabeça e despediu.
                Bastião era um bom homem, mas não foi sempre assim, aprendeu a ser gente a duras penas. No passado foi um homem rico, mas gastou toda sua fortuna com cachaça e jogos. Batia na mulher, que morreu de desgosto, quando ele Bastião, causou a morte do filho num acidente de automóvel. Estava bêbado.
                 Não lhe restando mais família nem dinheiro. Bastião e seu mausoléu de lembranças , coisas antigas e brinquedos de sua infância. E foi seguindo os pés para um lugar que para ele tinha importância mítica, um lugar esquecido por sua memoria, mas que seu coração nunca abandonou.
                Bastião e suas lembranças partidas, caminhou, caminhou e caminhou chegando até o vão do MASP onde montou sua pequena barraca de coisas velhas e usadas e depositou o que restou de sua afeição.
                Estava anestesiado fazia muitos anos, mas algo naqueles profundos olhos pretos de Remmi despertou nele a vontade de cuidar e amar a outro. Um sentimento materno tomara conta de sua alma e todos os espaços vazios.
                E voltou o menino no dia seguinte como prometeu.
                Sebastião deu a ele um pequeno pássaro azul feito de madeira.
                -Que engraçado – disse Remmi- coisa mais estranha passarinho que não voa.
                - Mas esse não é um passarinho comum, esse é um passarinho imortal.
                - Imortal? Como imortal?
                - Imortal é quando alguém não  morre nunca . Depois que não estivermos mais aqui, esse passarinho continuara a existir passando pela vida de outro e outro para sempre.
                - Para sempre? Que coisa mais triste, ver tudo murchar e você e sempre frio – disse com lagrimas nos olhos- Eu não. Quero é morrer logo.
                - Não diga asneiras, você ainda é muito menino, tem muito que viver. Alias, onde você mora?
                -Na rua.
                -Como na rua? Mas e seus pais?
                - Não tenho, não lembro de já ter tido, nem sei bem como cheguei aqui.
                -Não seja bobo Remmi todos tem pai e mãe.
                -Bem ao menos não me lembro de ter tido.
                -Porque não vem morar comigo? Dou casa, comida não vai lhe faltar nada e nunca mais vai ter que ficar sozinho. Hoje mesmo acerto tudo, te adoto para filho e você fica sendo meu.
                Remmi enrubesceu de espanto, quis correr fugir para longe. Não entendi. Então enquanto recobrava o fôlego respondeu:
                - Como posso pertencer a o senhor, se já pertenço a mim mesmo?
                Bastião não via maldade na proposta, em seu coração o que queria era cuidar do menino, acarinha-lo, por pra dormir, velar seu sono caso tivesse pesadelos. Tudo muito materna    
- Você é ainda muito menino pra tomar conta de si mesmo, fica sendo meu até ter idade pra se virar sozinho.
- Seu Bastião o senhor não entende. Não estou sozinho tenho universo todo a me olhar. Tenho o manto da noite pra que eu durma e as estrelas acesas para que eu não tenha medo do escuro. Tenho o sol para me despertar, as arvores para fazer sombra e suas frutas para que eu me alimente. O mundo é vasto, ninguém esta sozinho os sonhos me mantem vivo até quando for chegada a hora da grande despedida.
Bastião entendeu. Ele amava o menino. Remmi era uma dessas criaturas raras tão passiveis de ser amadas; que vezenquando por ignorância agente se pega com o desejo de guardar numa caixa, pra vezenquando poder ficar admirando. Mas ele era dele demais pra ser nosso.
Remmi voltou pra ver Bastião ainda no dia seguinte, no semana seguinte e nos meses que seguiram. Até que um dia não voltou mais.
Dizem que morreu outros que foi embora pra algum lugar distante. Mas Bastião viu quando Remmi foi sumindo numa mistura de nevoeiro e fumaça.
Era seu lugar.


Nathália Loiola